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Desafios das moedas virtuais: a experiência de El Salvador e os desafios encontrados Desafios das moedas virtuais: a experiência de El Salvador e os desafios encontrados

Desafios das moedas virtuais: a experiência de El Salvador e os desafios encontrados

Desafios das moedas virtuais: a experiência de El Salvador e os desafios encontrados

30/11/2023

El Salvador foi o primeiro país a adotar bitcoin como moeda corrente. De fato, as ideias do presidente Bukele se mostraram audaciosas, especialmente no que diz respeito à quebra de paradigmas, a fim de incluir a população no sistema financeiro. No entanto, a experiência Salvadorenha até aqui apresentou diversos obstáculos, de ordem tecnológica, informacional, operacional, cultural, e relativa ao meio ambiente. Para melhor discutir esses desafios, eles são elencados em itens individuais.

Desafio #1: informação, meio de pagamento e ausência de suporte técnico

Segundo a pesquisa conduzida por Alvarez, Argente e Patten (2022), em consonância com os dados da CNIEF (2020), apenas um terço da população adulta de El Salvador possuía conta bancária em 2017. Mais de 50% das transações no país ocorriam em dinheiro, com mais de 70% dos entrevistados sem conta bancária e quase 90% sem utilizar serviços bancários móveis. Os usuários da Carteira Chivo dispensam a necessidade de conta bancária, embora a adoção do Chivo exija acesso a um telefone móvel e à internet. A pesquisa ressalta a iniciativa da Carteira Chivo como uma estratégia para combater a baixa titularidade de contas bancárias, a preferência por transações em dinheiro e a falta de adoção de serviços móveis, visando promover a inclusão financeira, especialmente considerando que 64,6% dos salvadorenhos possuem acesso a um telefone móvel com internet (ALVAREZ, Et. Al., 2022, p. 10)[1].
            A baixa bancarização representa um desafio significativo no contexto da Chivo Wallet, a carteira oficial do país que possibilita a negociação digital de bitcoin e dólares sem imposição de taxas de transação. Embora o governo conceda um bônus de US$ 30 em bitcoin como incentivo para os cidadãos que baixam o aplicativo, a experiência de uso da moeda digital tem sido marcada por inúmeras falhas técnicas. Uma das principais reclamações está relacionada à complexidade do acesso, pois os usuários possuem uma chave pública e privada, e a perda desta última implica na irreversível perda das bitcoins (BRIGIDA, SCHWARZ, 2022).

As chaves públicas e privadas são elementos de criptografia que são utilizadas nas transações de criptomoedas. A chave privada é uma chave secreta, isso porque confere ao usuário o controle total sobre suas bitcoins. Portanto, somente a pessoa que tiver o domínio dessa chave poderá movimentar as bitcoins. De outro lado, a chave pública é derivada da chave privada, pode ser vista como um endereço, utilizada para receber as bitcoins. No entanto, essa chave é compartilhada publicamente, permitindo que qualquer usuário envie bitcoin para esse endereço.

Nesse sentido, ao contrário de outras carteiras digitais, a Chivo não permite que os usuários tenham controle sobre as chaves de suas bitcoins, configurando-se como uma carteira de custódia. Durante as transações, é necessário fornecer dados pessoais, o que expõe informações privadas ao público (ALVAREZ, ET. AL., 2022).
            Além disso, é crucial destacar que essa abordagem adotada pela Chivo está em desacordo com o princípio fundamental da descentralização das moedas virtuais. Isso porque, a descentralização visa assegurar a autonomia dos usuários sobre seus ativos digitais, permitindo-lhes o controle total de suas chaves privadas. No entanto, ao operar com a carteira de custódia, a Chivo introduz um elemento centralizado, removendo parte da liberdade que normalmente caracterizam as transações com criptomoedas.

A exposição de dados pessoais ao público não apenas representa uma preocupação significativa em termos de segurança, mas também contradiz a essência da tecnologia blockchain, que busca proporcionar transações seguras e anônimas. Portanto, ao optar por essa abordagem que diverge da descentralização e compromete a privacidade dos usuários, a Chivo desafia os ideais fundamentais que impulsionaram o desenvolvimento das moedas digitais.

Nesse contexto, os principais desafios identificados incluem a exclusão financeira, dado o fato de que grande parte da população não tem acesso a serviços bancários, os custos associados à utilização desse meio de pagamento e as características do modelo de carteira adotado pelo país.

Desafio #2: Transparência na gestão dos recursos

O segundo desafio encontrado é a ausência de transparência na gestão dos recursos para a compra de bitcoins, fator que contribuiu para a baixa adesão à moeda (INVESTING, 2021).

O impacto da Bitcoin não ser considerada uma moeda legal em muitas jurisdições, é significativo. A falta de status legal pode gerar incertezas e desconfiança tanto entre a população local quanto entre investidores estrangeiros. Isso cria obstáculos para a aceitação generalizada da criptomoeda, afastando potenciais usuários e investidores.

No contexto de El Salvador, a informação apresentada sugere que o Banco Mundial não mostrou interesse no projeto de implementação da Bitcoin como moeda legal no país. Isso pode ser atribuído à falta de planejamento e transparência no projeto, conforme mencionado por Mancini (Blocknews, 2021).

O Banco Mundial desempenha um papel significativo em questões financeiras e de desenvolvimento em nível global, mas não exerce um papel regulatório direto sobre a implementação de moedas específicas em países. Sua atuação geralmente se concentra em fornecer assistência financeira, orientação política e expertise técnica para promover o desenvolvimento econômico e reduzir a pobreza.

No caso da moeda Bitcoin em El Salvador, sua adoção como meio de troca implica que ela pode ser utilizada para transações diárias no país, como compras e pagamentos. Esse reconhecimento pelo governo carrega implicações regulatórias e legais, uma vez que a legislação salvadorenha define a Bitcoin como moeda de curso legal. Contudo, o tema ainda suscita debates, já que muitos discordam dessa classificação, resultando em numerosas discussões sobre o assunto.

Acrescido a isso, a inexistência de informações em torno da “cibersegurança” e de questões financeiras do país, como por exemplo, “onde os fundos estão armazenados ou quem possui as chaves privadas da Bitcoin” geram um cenário econômico negativo e de insegurança. Também, afastam o interesse não só dos salvadorenhos na adesão da moeda, mas dos investidores estrangeiros e mercados internacionais no investimento no país (PEREIRA, Decrypt, 2022, online).

Desafio #3: Impactos no meio ambiente

A mineração de bitcoins é uma atividade que consome muita energia elétrica. A título exemplificativo, para verificar as transações realizadas pelos usuários, o sistema produz milhares de cálculos, e por consequência disso há um enorme consumo energético, o que resulta no aumento da emissão de carbono (ALMEIDA, 2021).

Importante acrescentar a informação obtida por Gabriel Silva dos Santos, em recente pesquisa acerca da ausência de regulamentação e normatização contábil de criptomoedas no Brasil, relativamente ao respectivo consumo de energia:

“apenas a rede bitcoin consome um volume de energia maior que a de países inteiros como Argentina e Países Baixos. Conforme a pesquisa, a rede bitcoin consome 112,57 TWh (Terawatts-hora) por ano, um consumo maior que o consumo doméstico das Filipinas, país do sudeste asiático que consome que 93,35 TWh por ano, e também maior que os Países Baixos que consome 110,6 TWh (Terawatts-hora) por ano (DOS SANTOS, 2022, Apud CAMBRIDGE BITCOIN ELECTRICITY CONSUMPTION INDEX, 2021, p. 07).

 

Nesse sentido, GLATZ (2021) ressalta que “estudos recentes mostram que a queda de produtividade como consequência da crise climática é um dos fatores que faz como que milhares de salvadorenhos tenham passado a viver na precariedade e sido forçados a migrar” (GLATZ, 2021, online).

Dessa forma, a função da bitcoin como meio de pagamento, devido ao intensivo uso do poder computacional para validar as transações, demanda muita energia elétrica (fontes decorrem de carvão), gerando para a população uma externalidade negativa. Isso porque, a emissão de CO2 da atmosfera tende a ser maior com o uso da bitcoin do que seria se fosse utilizada uma moeda fiduciária.

Consequentemente, isso vai na contramão da agenda climática reiteradamente discutida multilateralmente nas diversas versões das COP’s (Conference of the parties), especialmente do compromisso que países e empresas signatárias assumiram no intuito de redução da emissão de carbono na atmosfera. Por isso, o uso massificado de bitcoin como meio de pagamento pode exacerbar o impacto das mudanças climáticas.

Desafio #4: Volatilidade da cotação da moeda

De um modo geral, a volatilidade retrata as altas e baixas do mercado financeiro, ou seja, a variação dos preços. O desvio padrão é uma das formas mais usadas para quantificar a média de um ativo financeiro. Se hoje utilizarmos essa medida para cálculo de risco total, a bitcoin tem uma “volatilidade anual de 55%”, ou seja, é um ativo muito instável (PORTILHO, Exame, 2022, online).

Esse ambiente de incertezas já restou comprovado, três dias após a entrada em vigor da lei da bitcoin. Os US$ 30 que o governo concedeu à população residente, como forma de incentivo no uso do aplicativo (Chivo Wallet), desvalorizou e chegou ao valor de US$ 26 (BRIGO, Prensa, 2021).

Diante desse cenário, “não há uma autoridade institucional/estatal para realizar sua emissão nem para garantir sua confiabilidade, sustentabilidade e estabilidade. Tudo isso é feito em uma combinação de energia, tecnologia e matemática”. (BRANCO, Jota, 2021, online).

Considerações finais e Paralelo com o Brasil

A bitcoin, apesar de existir há quinze anos e ser dominante no mercado de criptomoedas, ainda é pouco utilizada como meio de pagamento. Em geral, as informações disponíveis indicam que a adesão da moeda digital pela população salvadorenha é baixa – menos de 60% da população baixou o aplicativo; e somente 20% continuou a usar a Chivo Wallet, após gastarem o bônus de inscrição (ALVAREZ, Et. Al., 2022).

Se a mesma medida fosse aplicada no Brasil, teríamos, provavelmente, uma resposta similar ao que aconteceu em El Salvador. Isso porque, também existe um alto grau de desbancarização da população, além de desafios com uso de tecnologia. Ainda, o investidor brasileiro tem um perfil conservador, tendo em vista que a modalidade de investimento financeiro que os brasileiros mais adotam é a poupança. Finalmente, a moeda permanece apresentando volatilidade elevada, a despeito de ter cada vez mais adoção por investidores de varejo, instituições, empresas e governos.

            Ao final, acredita-se que a melhor proposta para o uso das moedas digitais é a sua regulação, podendo vir a ser utilizadas como alternativas de meio de pagamento. No Brasil e em outros países, propostas legislativas encontram-se em andamento, e a maioria visa a coibição de práticas ilegais, gestão de riscos e práticas de governança, a fim de garantir a maior eficiência dessas operações.

 

Referências

ALMEIDA, Poliana. O imenso impacto ambiental das criptomoedas. CNU – Central de notícias Uninter. Disponível em: https://www.uninter.com/noticias/o-imenso-impacto-ambiental-das-criptomoedas. Acesso em: 20 de maio de 2022.

ALVAREZ, Fernando E.; ARGENTE, David.; PATTEN, Diana Van. Are Cryptocurrencies currencies? Bitcoin as legal tender in El Salvador. Working Paper 29968. Abril, 2022. Disponível em: https://www.nber.org/system/files/working_papers/w29968/w29968.pdf. Acesso em 17 de maio de 2022.

ASAMBLEA. Disponível em: https://www.asamblea.gob.sv/sites/default/files/documents/dictamenes/27F0BD6F-3CEC-4F52-8287-432FB35AC475.pdf. Acesso em: 11 de maio de 2022.

BRANCO, Luiz Guilherme. A lei bitcoin de El Salvador e a ordem jurídica da moeda. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-bitcoin-el-salvador-ordem-juridica-moeda-25062021. Acesso em: 19 de maio de 2022.

BRIGIDA, SCHAWARZ. Six months in, El Salvador’s bitcoin gamble is crumbling.  Disponível em: https://restofworld.org/2022/el-salvador-bitcoin/. Acesso em: 13 de maio de 2022.

BRIGO, Luana. Bitcoin como moeda oficial: erro ou acerto de El Salvador? Disponível em: https://prensa.li/prensa/bitcoin-moeda-oficial-el-salvador/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

DOS SANTOS, Gabriel Silva. Ensaio teórico sobre a ausência de regulamentação e normatização contábil das criptomoedas no Brasil. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/34392/1/EnsaioTeoricoAusencia.pdf. Acesso em 18 de maio de 2022.

GLATZ, Pedro. Bitcoin em El Salvador uma medida injusta e irresponsável. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/07/17/artigo-bitcoin-em-el-salvador-uma-medida-injusta-e-irresponsavel. Acesso em: 18 de maio de 2022.

MANCINI, Claudia. FMI tem receio sobre adoção de bitcoin em El Salvador, o que aflige investidores. Blocknews. Disponível em: https://www.blocknews.com.br/governos/adocao-de-bitcoin-por-el-salvador-preocupa-fmi-e-investidores/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

PEREIRA, Daniela. Os bitcoins de El Salvador estão seguros? Parece que não. UOL. Disponível em: https://portaldobitcoin.uol.com.br/os-bitcoins-do-governo-de-el-salvador-estao-seguros-parece-que-nao/. Acesso em 19 de maio de 2022.

PORTILHO, André. Crypto Insights: a volatilidade do bitcoin. Exame. Disponível em: https://exame.com/future-of-money/crypto-insights-a-volatilidade-do-bitcoin/. Acesso em: 18 de maio de 2022.

 

 

[1] Only one-third of the adult population in El Salvador owned a bank account at a financial institution in 2017 (CNIEF, 2020). This aligns with the results of our survey. We find that most transactions in the country are paid in cash—in fact, over 50% of people use only cash to pay for their expenditures. We also document that more than 70% of respondents are unbanked, and almost 90% of them do not use mobile banking. Figure 1 reports both findings. Users of Chivo Wallet are not required to own a bank account or a card, however, a pre-requisite to adopt chivo is to have access to a mobile phone and the internet. While the Population Census and Household Surveys in El Salvador ask households about cell phone ownership and access to internet separately, we surveyed respondents on whether they have access to a mobile phone with an internet connection. We find 64.6% of Salvadoreans have access to a mobile phone with internet[1]” (ALVAREZ, Et. Al., 2022, p. 10).

Caroline Cignachi Messinger
Autor: Caroline Cignachi Messinger

Advogada Graduada em Direito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS/RS.Mestre em Direito dos Negócios pela Escola de Direito na Fundação Getúlio Vargas/SP.
Pesquisadora do Grupo de Estudos sobre o Impacto da Teconologia nas Relações Juíridicas, Sociais e Econômicas da FGV Direito/SP.

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